2.5.03

Pausa para uma crônica
E vale dizer que eu tirei essa do "Blog do Meu Pai", que eu li de cabo a rabo... São emocionantes os relatos de uma blogueira que não quer deixar morrer a memória do pai -que já faleceu. "Escrevo para meu pai viver mais", diz Stella, a autora.

Me fez lembrar de uma música do Pato Fu, Canção pra você viver mais, feita (se eu não me engano) em homenagem ao pai da Fernanda Takai, que tinha na época acabado de morrer (o pai, não ela).

A babá, de Adriana Falcão [sobre a autora]
Ela veio do interior. Onze irmãos. Começou a ajudar a mãe logo cedo, tomou conta de menino, catou piolho, caiou muro, passou fome, cortou cana. Um dia veio pro Rio de Janeiro, "agora, sim, o negócio vai ser outro". E lavou roupa, levou golpe, fez faxina, trabalhou em casa de madame, lustrou prata, engomou vestido de festa, levou gato angorá em pet shop, arrumou criança pra aula. Hoje ela cuida de uma velhinha bem velhinha que infelizmente não sai mais da cama. Logo no primeiro dia de serviço avisaram que dona Diva não falava. Porque duvidou disso, ela foi logo puxando conversa.

– A senhora tem cara de quem gosta de sorvete.

Breve silêncio.

– A mocinha falou comigo?

– Falei que a senhora tem cara de quem gosta de sorvete.

– Gosto muito do de pistache porque é verde.

– Com casquinha de biscoito?

– E muita calda por cima. O Major sempre me trazia, quando chegava da rua. Ele nunca deixou de me trazer nem que fosse um bombonzinho, um perfuminho, uma margarida...

A partir de então, dona Diva fala o dia inteiro.

– Quantos anos eu tenho mesmo?

– 91.

– Mentira sua.

Agora, sim, ela aprendeu. Sempre que a patroa pergunta a própria idade, ela responde "5". Ou 12. No máximo, 20. A velhinha fica feliz da vida.

– Tão engraçadinha essa menina.

– Não é menina, dona Diva, é o cachorro.

– Vocês pensam que me enganam.

O cachorro da casa passou a ser uma menina pra agradar dona Diva, que nunca gostou muito de cachorro. Precisa ver como ele fica lindo de lacinho e de vestido.

– Você não vai me levar pra escola hoje?

– É mesmo. Que burrice a minha. Vou só engomar seu uniforme primeiro.

– Você é muito demorada.

– A senhora é que não imagina o trabalho que dá pra passar aquela saia, prega por prega.

Mentira nem sempre é mentira de verdade. Esse tipo de filosofia, ela aprende no dia-a-dia.

– Vá tomando seu suquinho enquanto eu vou buscar a toalha.

– Pensa que eu não sei que você bota remédio dentro? E pode esquecer o banho.

Além de babá, ela passou a acumular as funções de enfermeira, mágica, diplomata, carteiro e autora de cartas fictícias.

– Olha o que acabou de chegar: carta de Alzira, sua amiga de infância.

– Finalmente. Cadê meus óculos?

– Deixa que eu leio pra senhora. "Querida Diva, por aqui está tudo bem, graças a Deus..."

(Desde a II Guerra dona Alzira não dá notícias.)

– E cadê Olavinho, que nunca mais apareceu?

– Tá ótimo. Bonito. Gordo. Mandou avisar que na semana que vem aparece sem falta.

(Olavinho não dá as caras há mais de trinta anos.)

– Não está na hora do meu balé?

– Seu balé não é hoje não, dona Diva. É dia de terça e quinta.

Quando esquece as coisas, a velhinha fica tão triste que não custa nada dar uma mãozinha.

– Eu preciso telefonar pro... pra... pro...

– Pro seu professor de piano.

– Que professor de piano, menina! Eu preciso telefonar pra...

– Pra costureira?

– Já disse que não.

– Claro que não. A senhora precisa ligar pro seu avô, que hoje é aniversário dele.

– Você quer parar de me atrapalhar? Eu já lembrei. Preciso telefonar pro Major pra saber se ele vai atrasar pra janta.

(O Major morreu em 1969.)

– Pode deixar que eu ligo. – (Disca um número qualquer.) – Só dá ocupado.

– Quantos anos eu tenho mesmo?

– 16.

– Então deixa pra lá. Com 16 eu não conhecia o Major ainda.

– É mesmo. Que burrice a minha.

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