12.2.04

[com acentos]
Viver é preciso, contar também é preciso
Comecei a ler A insustentável leveza do ser há mais de ano e meio. Parei a leitura porque só ler era pouco. Comecei de novo, com lapiseira na mão, marcando os trechos que me tocavam. Mas rabisquei todas suas páginas! Depois, esqueci o livro em Israel, e ele passou meses aqui, fechado, até voltar para o Brasil -onde eu não tinha tempo para ler. Só voltando para Israel consegui recomeçar a leitura, de novo, do zero, do instante em que Tomas está diante da janela observando a parede do prédio vizinho. Em Jerusalém, nesta semana, avancei bastante na leitura. Mas tinha deixado a lapiseira em casa. Terei que recomeçar esse pedaço de quase duzentas páginas. Não faz mal.

Como já disse, gosto de ler Milan Kundera (também) porque ele se coloca no texto, fazendo parte da narração como analista, como opinador, como se discutisse com o leitor, em voz baixa, os caminhos que cada personagem deve tomar. Às vezes interrompe a história por duas páginas só para dizer o que acha, como se aquele personagem, aquele relato não tivessem nascido dele. Como ele mesmo diz, não nascem de ventres maternos os personagens. São cria dele. Mesmo assim, os questiona, como se fossem personagens de sua vida, e não de sua obra.

Gostaria de poder escrever sobre a minha vida com o mesmo talento com que Kundera escreve sobre a vida de seus personagens. Mas não consigo. Consigo apenas vivê-la, o mais intensamente possível. Mesmo assim, descubro que todo esse possível é ainda pouco. Falta muito para eu poder dizer que curto a vida adoidado.

Voltei de uma semana maravilhosa em Jerusalém. Foi uma semana de questionamentos, de ver coisas que me puseram minhocas na cabeça, de aprender a partir da experiência de outros que vieram na minha frente e de conhecer gente diferente -desde um venezuelano que mora em Londres e já trabalhou, durante dois anos, em uma prisão, a uma israelense que tem 18 anos, já mergulhou fundo nas drogas e hoje, "limpa" há 22 meses, diz que a cidade onde mora é o melhor lugar do mundo para se viver.

Estive no ulpan onde pretendo estudar cinco meses de hebraico a partir de julho. Visitei a universidade onde pretendo estudar História do Oriente Médio a partir de 2007. Conversei com gente que fez aliah há um mês, um ano, uma década, uma vida. Descobri que terei que aprender árabe no matter what -e a idéia de verdade me anima (já até pensei quando arrumarei tempo aqui para ter aulas)!

Fui apresentado a uma mulher que confiou nos meus sonhos e nos meus ideias e prometeu, com testemunha, investir na concretização deles. Conversei longamente com o ex-cônsul israelense em São Paulo e ouvi coisas sensacionais dele -desde a opinião de que a Sochnut deveria parar de mandar gente para Israel agora, até a de que Arafat deverá, para sair bem na foto e da sua vida, se dar conta logo de que só a negociação vai levar à criação de um Estado palestino. Estive com meus amigos que moram em Jerusalém.

Senti o chão tremer, até. E agora, pensando em tudo isso, sinto que foi como se tivesse sido um tremor interno, como se alguém tivesse me chacoalhado para me fazer olhar ao redor, naquele microcosmo maravilhoso e múltiplo chamado Jerusalém, a cidade que escolhi para viver, e me dar conta de que acho que sei, sim, o que estou fazendo. Ainda que eu não saiba, lamentavelmente, contar a respeito como o Kundera conta.

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